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Pintar para suspender o céu - reflexões a partir da exposição Abá Pukuá, de Aislan Pankararu

Helenice Vespasiano *

“Cantar, dançar e viver a experiência mágica de suspender o céu é comum em muitas tradições. Suspender o céu é ampliar o nosso horizonte; não o horizonte prospectivo, mas um existencial. É enriquecer as nossas subjetividades, que é a matéria que este tempo que nós vivemos quer consumir. (...) vamos, pelo menos, ser capazes de manter nossas subjetividades, nossas visões, nossas poéticas sobre a existência.”

Ailton Krenak**

Em fevereiro de 2020 as paredes do corredor da Unidade II do Hospital Universitário de Brasília foram convertidas em suportes para 21 pinturas de Aislan Pankararu. O então estudante de medicina da Universidade de Brasília fazia sua primeira exposição, denominada Abá Pukuá - Homem Céu, contando com apoio da governança e da Comissão de Humanização da instituição.

 

Essa exposição nasceu da urgência e da agência do artista. Urgência de existir em seus próprios termos e de afirmar sua presença e identidade frente às tensões do encontro com a universidade e o hospital. É dessa urgência também que nasce o próprio trabalho artístico de Aislan, o gesto de pintar convertido em um ato de resistência. Pintar, aqui, significa existir e enunciar os termos de sua existência. Pintar é dizer por si e não mais ser apenas dito por outros. 

 

Inundar de formas e cores as paredes brancas e assépticas de um hospital é operar inúmeras transformações. Muitas das grandiosas construções físicas e imaginárias do nosso tempo estão assentadas nos alicerces coloniais e foram erguidas por  espoliações e apagamentos de diferentes ordens. A universidade e o hospital não são diferentes, e embora estejam se abrindo, ainda reproduzem paradigmas hierarquizantes de formas de ser e saber que silenciam os povos indígenas. O hospital e a universidade são também território Pankararu, território índígena. Mas que lugar é dado a esses povos no cotidiano dessas instituições? Essa pergunta ecoou como um grito e nos foi devolvida em cada obra. 

 

A aparição do Homem Céu, Abá Pukuá, nos traz imagens das trajetórias individuais e coletivas dos povos indígenas em diáspora. O corpo-bioma do índígena sertanejo, que permanece firme e floresce mesmo após longos períodos de seca, como Mãdaka'ru (2020).  A tinta branca sobre o papel kraft, evocando a argila branca utilizada para a pintura corporal e trazendo a conexão com a tradição de onde emergem o cachimbo, o maracá, o chapéu de palha e o imbú, na obra intitulada Pankararu (2020). Algumas dessas imagens doem na carne, pois reverberam vivências pessoais e coletivas de preconceito e violência sofridos numa cidade marcada de forma perene pela memória de Galdino Pataxó, presente na obra Money, dinheiro, dinero e justiça seletiva (2020).

 

As obras dessa exposição são em sua maioria figurativas e nelas já é possível entrever os elementos que vão compor as mais recentes obras de Aislan. Aqui a tinta é disposta sobre o suporte com gestos exatos, precisos, transmitindo robustez e firmeza às composições, que evocam o chão firme do sertão e as formas acúleas da caatinga, território originário Pankararu. As figuras têm traços fortes, angulosos, e parecem talhadas no suporte como xilogravuras, como se as imagens tivessem sido retiradas do papel, e não depositadas sobre ele. Assim o sentido da construção pictórica de Aislan se sugere de dentro para fora, num movimento de tornar visível algo que sempre esteve presente. 

 

Abá Pukuá é ser em vastidão, homem céu. Seu transbordamento em imagens, dá forma aos invisíveis e potencializa sua agência no mundo.Sua aparição em pinturas nos conta como a arte, com sua capacidade de convocar o olhar, pode agenciar rupturas com as estruturas coloniais que soterram identidades e subjetividades.

*Estudante de Teoria, Crítica e História da Arte na Universidade de Brasília. Terapeuta ocupacional e membra da Comissão de Humanização do Hospital Universitário de Brasília. Fez parte da equipe da referida Comissão que junto com o artista realizou a organização e montagem dessa exposição. 

 

**No livro “Ideias para adiar o fim do mundo”. Companhia das Letras, 2019.

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