Povo Pankararu [Pankararu People]
Aislan e pintura do pertencimento - Laymert Garcia dos santos
Aislan Pankararu é um dos mais novos artistas a entrar na cena cada vez mais prestigiada da Arte Indígena Contemporânea, que abriu no campo das artes um leque de expressões da riqueza cosmológica, até então praticamente ignorada, dos povos nativos do Brasil. Antes dele, Jaider Esbell, Denilson Baniwa, Daiara Tukano, os Mahku, e outros, além dos vários Yanomami que haviam realizado desenhos formidáveis desde os anos 70 até o venezuelano Sheroanawe Hakihiiwe, já haviam deixado claro que uma nova dimensão das artes visuais estava sendo introduzida no país. E tinha vindo para ficar.
Assim, o trabalho de Aislan é parte desse coletivo, dessas vozes múltiplas que afirmam, valorizam e fazem ressoar modos de ser e de conhecer originados em outras lógicas, ampliando o alcance de nossa percepção. Os efeitos desse processo apenas começam a se fazer sentir – mal se delineou a compreensão do que isso pode vir a significar. Mas o impacto já é inegável no circuito da arte brasileira.
Nesse contexto, embora recente, a presença de Aislan Pankararu se destaca. Antes de tudo, por seu talento incontestável, manifesto em desenhos e pinturas que surpreendem o espectador pelo domínio da fatura, pela originalidade de suas figurações, pelo equilíbrio certeiro de suas composições, pela facilidade e domínio do traço, pelos títulos das obras, em suma, pela potência de uma arte que é jovial e, no entanto, já se mostra madura.
Surge, então, a pergunta: Como isso é possível? A perplexidade revelada pela pergunta torna-se mais aguda quando se sabe que a experiência da arte é, para Aislan, algo novo; que até pouco tempo a Medicina ocupava boa parte de sua atenção e atividade; que seu aprendizado se fez na solidão, fruto daquilo que o crítico Maurice Blanchot denomina uma “exigência” incontornável, e não escolha ou capricho. Em resumo, isso foi e é possível porque uma força maior pôs e põe em movimento a arte de Aislan, revelando sua necessidade.
Quando se percorre sua trajetória, desde os primeiros trabalhos em 2019 até agora, é fácil detectar dois grandes imperativos que tornam a arte o resultado sempre renovado de uma exigência. Em primeiro lugar, o imperativo do pertencimento a um povo, o povo Pankararu, que emerge na reinterpretação do vibrante e dançante Praiá (indumentária de fibras dos rituais) e na contínua e variada reelaboração da pintura corporal – é ela quem faz do traço branco, largo e intenso o emblema de sua visualidade. Por outro lado, há o imperativo do pertencimento a uma terra, o Sertão, a caatinga, que retorna nostálgica e insistentemente, e explode nas cores e formas do mandacaru. Assim, pertencimento a um povo e pertencimento a uma terra são interiorizados, remoídos, reinventados, até reemergirem reconfigurados e redesenhados em fluxos pictóricos que encontram vazão na tela ou no papel. Não é à toa que o artista emprega a palavra “transe” para nomear sua atividade artística; mas atenção: transe, aqui, não é empregado como metáfora, e sim como um estado alterado, a comandar o que acontece em termos de criação.
Tudo se passa, então, como se Aislan empreendesse um retorno a uma condição ancestral que se afirma viva, aqui e agora. Mas não se trata de uma afirmação voluntariosa, postiça, ou puramente intelectual. Sem o acesso a essa condição ancestral não haveria desenho ou pintura, porque não haveria a energia que nutre a ação, a tomada de forma. Aislan, portanto, faz jus à inclusão do termo Pankararu em seu nome artístico.
E, no entanto, ao mesmo tempo, o artista não esconde ou tenta apagar um período muito importante de sua formação e de sua trajetória; a saber: seus estudos de Medicina, e o que aprendeu com eles. Com efeito, aqui se exprime um pertencimento de outra ordem – o da ciência. Porque as imagens também são como que informadas pelo conhecimento da Histologia, da atividade celular, da circulação sanguínea... que afloram nos círculos, nas bolinhas – verdadeiros núcleos celulares -, nas “ondas fractais, germinativas”. Nesse sentido, em vez de uma oposição e contradição entre conhecimentos tradicionais e modernos, os desenhos e pinturas fazem reverberar a exigência ancestral na fisiologia de um homem que vive no mundo moderno, num corpo que se entende indígena contemporâneo. Corpo que grita, sangra, se precipita, se recolhe, se explora, se ausculta, em constante recriação... corpo que é flor de dor.