Povo Pankararu [Pankararu People]
Aislan Pankararu: A afirmação de uma identidade - Bia Pankararu
Entrevista Aislan Pankararu por Rodrigo Villela
Sobre a obra ‘Evaporação’ por Gabrielli Simões
Pintar para suspender o céu - reflexões a partir da exposição Abá Pukuá, de Aislan Pankararu
Aislan e pintura do pertencimento - Laymert Garcia dos santos
Entrevista Aislan Pankararu por Rodrigo Villela
Em meados de 2021 recebo uma mensagem por Instagram. Era Aislan Pankararu, querendo marcar uma conversa, de maneira espontânea. O jovem médico queria entender mais do mundo das artes. Marcamos um Zoom e nos conhecemos virtualmente. Uma semana depois, o recém-formado médico Aislan se deslocaria de Brasília para Boiçucanga, para uma residência artística no Kaaysá, coordenada por mim. Naqueles dias de convívio intenso, olhos atentos e peito aberto – e piadas sem fim –, estabeleceu contato com artistas em diferentes etapas de trajetória, trabalhando com múltiplos suportes, técnicas, pesquisas… Aislan aprendeu rápido a esticar tela e mostrou plena desenvoltura em suas pinturas. Desde de então, acompanho sua produção de perto – e sua evolução no campo das artes. Atualmente ele vive em São Paulo, é representado por uma galeria de grande porte e seu trabalho tem circulado velozmente tanto em instituições como em coleções privadas. Para comemorar o lançamento de seu site, fizemos essa conversa em minha casa, no final de novembro de 2022:
O que é arte para você?
Arte é um complemento do meu ser. É uma necessidade de me expressar, é de onde eu venho. É uma necessidade de materializar o que eu faço. A arte é um jeito de me expressar, uma necessidade de me dar um lugar de visibilidade, e de colocar "essa coisa" que tem dentro de mim para fora, e fazer isso chegar até as pessoas, uma maneira de estabelecer contato, tocar as pessoas. Como um processo de cura, tanto para mim como para quem é atingido pelo trabalho.
E o que é medicina para você?
Medicina é também uma arte, uma outra forma de materializar uma energia de cuidados, trocas. Energia é uma força que eu carrego, uma necessidade. Que se manifesta em diferentes campos. Eu me dediquei há quase 10 anos à medicina, entre faculdade e atuação como médico. Eu fui para medicina porque eu queria viver como médico, era um sonho. Era a realização de uma posição de destaque. Uma relação nostálgica com minha família. Minha mãe sempre tinha que se deslocar muito para ter atendimento médico especializado, e eu queria mudar isso.
Para mim, a arte me cura porque o ser humano sempre está em busca, sempre tem dúvidas, sempre quer resposta para tudo. E a arte oferece uma possibilidade de acalmar essa ansiedade pela descoberta do novo, e respeitar esse processo. É como se a arte fosse terapêutica.
O que você vê de transformador na arte?
O próprio processo e o caminho que a arte segue até chegar nas pessoas. Como uma terapia, num campo emocional. Para mim é uma abertura de um novo mundo, que estava fechado para mim. E agora estou abrindo essa porteira e deixando tudo seguir como deve ser. Antes eu não tinha maturidade para lidar com isso e hoje eu tenho mais conhecimento para lidar com isso.
Quando que a arte, esse fluxo de criação, começou a aparecer na sua vida?
A primeira vez que me dei conta que estava me expressando artisticamente foi desde criança mesmo, em Petrolina, Pernambuco. Eu sempre apresentei certa habilidade, diferente das crianças da minha idade, que muitas vezes até questionavam se eu mesmo que tinha realizado os desenhos que eu fazia. Esse fluxo foi reprimido, por conta da minha condição, de ser do interior, e de não ter lugar para expressar essa fluidez. Quando eu era criança não tinha estímulo para isso não.
E quando pequeno você desenhava em quais suportes e com quais materiais?
Na escola, era sempre no material da escola. Cartolina ou caderno de artes, com lápis de cor. Já em 2005, quando eu era pré-adolescente, tive um episódio de colocar isso para fora. Era uma gincana de pinturas e desenhos, atrelado à moda. Eu ganhei o primeiro lugar no de moda e segundo no de pintura. A pintura era uma paisagem, como se fosse uma mata atlântica e o mar, com guache. Era uma paisagem imaginada, me deu vontade de fazer. Foi meu primeiro reconhecimento – o troféu está em casa até hoje, e trago ele comigo. Mas eu via como uma tarefa da escola, apesar dos elogios. Mas depois disso eu fechei essa porteira. Na época eu ajudava muito meus pais, ajudava na roça. Não tinha espaço nem tempo para isso acontecer. Era uma vida de responsabilidades. A única função mais lúdica era em momentos de criatividade, fosse arrumando a casa ou ajudando minha mãe ou irmã a se arrumar. Mas na pré-adolescência eu já sentia que era diferente e reprimia isso. Para mim isso estava atrelado a uma vida sofrida, que eu não queria para mim. Eu não queria nenhum rótulo.
E como a questão da afetividade interferiu na sua produção artística?
Eu tinha receio de me expressar criativamente para não ser visto como gay. Isso freou todo um processo. Mas enquanto eu não me resolvi que eu queria fazer um percurso no mundo das artes, eu não sosseguei. Em 2019, eu comecei a fazer o estágio da faculdade de medicina e isso me tranquilizou. Mas com isso veio um fio elétrico desencapado, uma coisa meio nostálgica, e aí eu comecei a desenhar de novo. Eu estava em Brasília cursando medicina, longe do meu lugar de origem, do meu contexto familiar, cosmológico, longe da caatinga e do povo Pankararu. E aí por conta dessa saudade, dessa falta, eu comecei a preencher esse vazio com arte. E isso caminhou junto com a descoberta da minha afetividade. Tem uma obra que são dois indígenas, meio que se beijando, um do nordeste e outro do norte, num encontro. Tem uma coisa meio lálálá ali.
Além da saudade, o que você identifica desse período de 2019, que abriu espaço para você começar a produzir artisticamente?
A falta de pertencimento. Tanto a distância geográfica como a frieza do espaço da medicina, que foi muito difícil para mim. Muita rigidez. E aí eu precisava me expressar, para não enlouquecer. Eu uso a arte justamente para tentar equilibrar esse sentimento e me entender, me fazer entender. Um novo jeito de me apresentar, para as pessoas saberem o que eu faço artisticamente. Eu não era envolvido em projetos de pesquisa em medicina e já estava questionando o lugar de médico. Isso tudo foi muito difícil para mim, aí eu fui buscar um outro espaço de realização. Fui procurar um outro lado meu, que me move. Era tudo instinto, quase uma coisa ritualística, um transe, um jeito de me sentir vivo. No começo do meu processo criativo eu estava procurando uma cura para mim. E queria compartilhar isso com as pessoas. É meio ingênuo falar isso, mas é assim. Sem nenhum tipo de programação estrutural. Uma coisa solta, livre. É isso que eu quero compartilhar com as pessoas. É isso que conecta as pessoas com meu trabalho.
Hoje você se vê atuando de outra maneira que não seja por meio da arte?
Hoje não, sou artista. Arte é tanta coisa. É a maneira que meu ser institintivo se manifesta. Eu me formei em medicina no início de 2021. Foi tão complexo cursar medicina, me exigiu demais. Eu queria ser médico de família ou dermatologista. E hoje tudo isso está no passado. Eu não me via onde estou hoje, com uma carreira nas artes, mas queria muito mudar de rota. Hoje estou numa exposição coletiva no Itaú Cultural. Quando eu ia estar numa exposição coletiva numa grande instituição cultural na Paulista? Para o cabra tomar essa decisão, tem que ter uma coisa aí. Um desejo, uma vontade de ver meu trabalho circular. De deixar "essa coisa", essa energia, esse fluxo, circular. Uma espécie de vocação?
E como você expressa essa vocação?
Como? Fazendo. Com tinta, pincel. Fazendo. Meu trabalho carrega esse amadurecimento da minha trajetória. Foi a medicina que me moldou. Desde que eu comecei a trabalhar o ser humano, entender o ser humano por dentro, os órgãos, a fisiologia micro e macro celular. Minha faculdade de belas artes foi a medicina. Esse foi meu curso.
No seu trabalho tem toda uma experimentação plástica que pode ser conectada a células, movimentações sanguíneas. Qual relação você estabelece em seu trabalho com o corpo humano?
Só quando eu termino um trabalho que eu faço qualquer tipo de análise. As ondas germinantes que vem para mim eu entendo depois. Não penso quando estou fazendo, só faço. É só começar a fazer e pronto. É uma vontade interna. As ondas fractais, as bolinhas, tem uma relação, um apelo estético de um fluxo de energia, um transe, que tem uma ligação forte com meu povo. Muitos são fragmentos de pinturas corporais do meu povo, mas do meu jeito. Eu pego essas informações visuais e faço do meu jeito. É o jeito de expressar minha identidade, falar do meu povo, dessa cosmovisão, é trazer e evidenciar essa cultura dos povos do semi-árido, então o bioma vem forte no meu trabalho.
Quando pequeno, eu participava muito dos rituais, brincava muito de Menino do Rancho (cujo chapéu-capacete é feito de folha de Palmeira Licuri), de Praiá (com indumentárias feitas de fibra de Caroá). As pessoas me pintavam com a tinta sagrada, que tem uma forma de ser utilizada. Mas o menino do rancho era uma brincadeira. Era um momento que eu me expressava livremente. Brincava. Dançava, participava da movimentação toda. Peitava os praiá, para não deixar eles passarem.
Hoje quando eu pinto eu vivencio uma relação de liberdade. E isso cria muita aproximação com meu povo, por conta de trazer em meu trabalho elementos da minha cultura. Mesmo quando eu não vejo relações diretas, sempre algum parente vem e me conta de alguma relação.
Qual sua relação com os outros povos indígnas?
Eu quero estar com os meus.
E nesse momento de revisão de questões identitárias, de filiação, como você vê seu trabalho?
Meu trabalho tem uma potência de falar dessa representação do divino, do meu povo do semi-árido, esse outro universo que estava esquecido. É um processo meio ingênuo e forte, mas minha arte não está limitada a isso. Meu assunto não tem que ser esse. Não quero que meu trabalho seja porta-voz de uma militância. Quem tem espaço hoje e está dando visibilidade ao nosso trabalho sempre procura rotular. Mas eu dispenso esses rótulos.
Na história do Brasil, os povos originários já se desgastaram muito. Querer dar visibilidade pro nosso trabalho e só falar de morte e sangue, para educar, falar como tem que ser…. não dá conta. Outros segmentos da sociedade têm que abraçar essa causa também. Pensadores, antropólogos, brancos, negros, todos, todes. O que me conecta com esses movimentos são as possibilidades que foram tomadas desde a colonização. É uma reparação lenta. Esse processo é importante para mim, é uma forma de sermos visto de outro lugar, outra lógica, outra forma. Num plano mais amplo, fazer parte desse momento é contribuir com outra forma de ver o país.
O que te conecta com os movimentos identitários atuais?
As possibilidades de mudança, de reivindicação de espaço, reconectar com um espaço perdido desde a colonização. É uma reparação lenta. Esse processo é muito importante porque é outra forma de trazer um novo olhar, que leva em conta nossa trajetória e a trajetória de cada um de nós. É uma demanda, mas a forma como as estruturas estão inserindo nosso trabalho muitas vezes é complexa. Nosso trabalho não se encaixa nas demandas. É natural, orgânico. Querer colocar a gente no espaço só para falar de morte, do peso da nossa existência, é contestável.
Como a obra e a morte do Jaider Esbell impactaram sua visão?
Apesar de todas as mudanças muito rápidas em relação à revisão dos acervos e à presença dos povos originários nas artes visuais, nas instituições, e à presença das artes dos povos indígenas, eu vejo o Jaider como uma espécie de advogado. Estava inserido, representado por uma galeria de prestígio, bem colocado, ele era muito forte e muito representativo. Seu trabalho era muito potente. Trazia um fluxo, um quê de seguir essa coisa energética. Não tinha uma programação: tem uma tela para fazer, vai fazer, vai trabalhar essa energia. Nisso a gente se parece, nesse sentido do cultivo de uma carga ancestral. Com ele eu via a possibilidade de trocas por meio dos trabalhos.
Voltando a falar do seu trabalho, você tem obras monocromáticas, em branco, em preto, com pontos de cor. E você transita com fluidez no uso dessas cores.
Eu vejo essas complexidades de exprimir meu ser no meu trabalho, mas eu ainda tenho dificuldade de me moldar ao que esperam de mim. Não quero encontrar uma fórmula, uma receita. Quero é trabalhar a multiplicidade de possibilidades do meu trabalho. É uma coisa interna que me move. Se o que dá unidade ao meu trabalho é uma bolinha, que conecta, tudo bem. A bolinha é uma síntese de uma pintura corporal, sagrada, é também um núcleo celular, luz, fluxo, coisas que não assentam, mistério. É isso. Meu trabalho tem essa fluidez.
Antes de começar a entrevista, há pouco, você comentava do Hudinilson e do Leonilson, do quanto o trabalho deles te impactou. E o quanto você se identifica com a produção de ambos. Por quê?
O Léo e o Hudinilson… O Hudinilson tinha essa coisa de querer o espaço do trabalho dele, querer que o trabalho dele fosse valorizado, queria dar visibilidade ao fazer dele. De alguma forma eu vejo a utilização dele de usar o corpo. Nisso a gente se conecta. No Léo eu vejo como ele coloca o sentimento no trabalho. Como ele falava da solidão, do amor, do ser homodesejante, do ser em dúvida sobre o amanhã. Então, são histórias que se conectam com a minha, de alguma forma. Me deixam pensativo, feliz, emocionado.
E quais outros artistas te impactam?
Numa questão mais física, da realização do trabalho, eu gosto muito do Tunga. Eu acho que a gente tem uma aproximação aí ou alguma coisa que liga com um certo tipo de magnetismo. Meio alquimista, meio fazendo testes. Uma coisa que junta a realização e o desejo, essa parte da materialidade me fascina muito na obra dele. Tramas de cordas… ondas germinantes, toda uma trajetória… coisas que se aproximam do meu trabalho, ou que eu gostaria que aproximasse.
E quais os pontos importantes da sua ainda breve trajetória?
O maior foi esse ano: respeitar essa coisa que me move e me dedicar à arte. Mudar, tomar outro rumo. Cheguei até aqui, e pronto, quero mudar. Mudar minha trajetória e as coisas. Minha produção artística foi muito bem recebida. O choque de visão foi na residência Kaaysá. Aí que eu vi que arte era uma coisa tão complexa como a medicina. Tudo depende de trajetória. Tudo é trabalhoso e os dois campos são valiosos. Ver essa possibilidade, ter contato com artistas com mais trajetória, que trabalham com outros suportes, outros materiais, e estar nesse ambiente de troca foi o maior boom que eu já tive. Esse foi um passo fundamental para eu investir mais na carreira artística. Eu tenho meus protocolos internos, e vi que esse mundo tinha uma rede de protocolos. Essa visão me deu um amadurecimento forçado, mas natural e rápido.
Como você se vê hoje?
É muita coisa acontecendo ao mesmo tempo. Só estou indo…
O Krenak fala da relação do homem branco com a natureza, que se desconectou da natureza. Está fora. Mas que para os povos originários tudo está integrado. Como a sua identidade repercute no seu trabalho atualmente?
Identidade vem no meu trabalho. Para mim está fácil. Sei de onde vim, sei do meu pertencimento, de alguma forma faço uso dessa relação e isso me fortalece. Fortalece minha individualidade e também coletivamente. Minha identidade está ligada à natureza. É um campo extremamente forte em mim, de um jeito aislaniano, mas é um cultivo de um campo interno de exaltação à minha natureza, esse bioma específico que é a caatinga, no meu caso. Esse é um assunto bem forte no meu trabalho, de falar dessa nostalgia do meu bioma, do cheiro desse bioma, da presença dele. Isso está no meu trabalho.
Você recentemente fez uma coleção para a Tok&Stok. Como o design está conectado com seu trabalho artístico?
Eu amo design e moda. Para mim não tem diferença hierárquica entre eles. Está tudo num mesmo plano de criação. Tem coisas que às vezes estão em desenho, depois vão para tela. Ou viram o frasco de uma vela, que as pessoas levam para casa. É isso, parece que estou pronto.
Você agora acaba de entrar para uma galeria grande, a Galatea. Está de mudança casa, uma casa-ateliê, com espaço para criar. Como essas mudanças afetam seu trabalho?
Estou vendo esse momento com muita empolgação, para fazer novos experimentos, pintar, dialogar mais comigo mesmo. Ter mais respiro. Mais parede. Mais espaço. O momento pede essa ampliação do trabalho.
Onde você vai para alimentar seu trabalho? Fisicamente, geograficamente?
É internamente. Tudo ligado à minha origem, ao meu espaço de onde eu vim. Tem um pedido de ir lá, buscar essa fonte, beber essa água. Emocionalmente, eu sempre retorno lá para criar. Sempre. Estou lá. Agora mesmo eu preciso voltar para lá, fisicamente. É onde eu retorno para criar. Meus trabalhos são isso.
Até agora, qual seu maior aprendizado no mundo das artes?
Difícil, porque paciência não tenho. Tudo de vocês é produzir, né? Produzir eu produzo. Mas o mais interessante foi acreditar que essa recompensa, essa resposta para as minhas questões, vêm do fazer. De tentar baixar a ansiedade e perceber que as respostas para o que eu procuro vêm do trabalho. Do fazer e da troca com que isso propicia com as pessoas. É isso.